13 Reasons Why E As Coisas Que Precisam Ser Ditas

12.4.17


Faz tempo que uma série não mexe com as pessoas desse jeito. E quando falo em mexer, é no sentido mais amplo, íntimo e doloroso possível, de provocar mesmo, botar o dedo na ferida, incomodar, trazer à tona pensamentos que a gente prefere ignorar, mesmo quando são sentimentos que precisam vir à superfície, assuntos que devem ser debatidos, coisas que precisam ser ditas. E como a experiência de ver e absorver 13 Reasons Why é única e pessoal pra cada um, esse texto é sobre as coisas que precisavam ser ditas pra mim. Espero que, em algum ponto da série ou da leitura, coisas necessárias tenham sido ditas pra você também.

* A PARTIR DAQUI, TEM MAIS SPOILER DO QUE OUVIR TODAS AS FITAS DE UMA VEZ *



1. "Um rumor baseado num beijo arruinou uma memória que eu esperava que fosse especial. Na verdade, arruinou quase tudo, como você logo vai ver. Eu sei que você provavelmente não queria me destruir. A maioria de vocês que estão ouvindo provavelmente não faziam ideia do que estavam fazendo. Mas vocês vão descobrir".

A essa altura, até quem nunca assistiu a série sabe do que ela se trata, mas não custa recapitular: o suicídio de Hannah Baker (Katherine Langford), uma estudante do ensino médio, deixa marcas profundas nos familiares, no corpo docente da escola e, principalmente, nos colegas – amigos, conhecidos, alguns apenas passagens rápidas, mas determinantes na história dela – que recebem fitas em que a garota narra os momentos em que eles se tornaram motivos para esse final trágico. São 7 fitas, cada uma com 2 lados gravados, sendo que a última tem um em branco. 13 porquês, com intensidades e motivações muito diferentes.

A primeira fita é dedicada a Justin (Brandon Flynn), o primeiro "amor" de Hannah. Envolvidos num contexto romântico muito comum de série adolescente até que se beijam no parquinho, os dois deixam de ser um casal padrão no momento em que ele distorce completamente o acontecido. Divulga uma foto de Hannah descendo o escorregador, diz que transou com ela ali mesmo e começa um processo de perseguição em que a menina será pelo resto da vida conhecida como a vagabunda, rótulo horrível que a gente – homens e mulheres – se acostumou a usar, sem pensar nas consequências, com qualquer boato ou comportamento que julgamos condenáveis pelo moralismo que nos acostumamos a pregar, mesmo que sejam parecidos com atitudes que nós mesmos teríamos ou decisões que podemos vir a tomar.

A conclusão acima, embora seja fácil de tirar da série, não é tão simples de aplicar na prática, e essa foi uma das coisas que a série teve que me dizer. O tempo todo da narrativa de Hannah, por mais que eu simpatizasse com ela, questionei: "mas é sério que isso é motivo de suicídio? Ela está jogando a responsabilidade nos ombros do menino porque ele espalhou um boato adolescente que daqui a pouco todo mundo esquece?". O negócio era um pouco mais complicado, e o pior: ninguém esqueceu o boato.

E aí, Hannah teve que me dizer repetidas vezes, direcionando aos homens da série, mas atingindo boa parte do público: "você pode achar que não é nada demais, porque você não entende o que é ser uma menina. Você não sabe o que é ouvir os cochichos, os risinhos, o que é ser tratado diferente e às vezes acreditar que merece aquele tratamento porque de alguma forma parece que a culpa é sua". Ela teve que dizer muitas vezes e eu tenho certeza de que nem assim entendi o suficiente para me colocar por completo na situação. É por isso que precisava ser dito e ainda precisa ser repetido até fazer efeito real. E a gente precisa se lembrar disso toda vez que se deparar com um Justin, e principalmente, quando agir como Justin.

2. "Você precisava que fosse minha culpa, então foi minha culpa".

Jessica (Alisha Boe) é provavelmente a maior vítima da narrativa junto com Hannah, mas também a mais fácil de apontar o que fez de errado. Após se tornar muito amiga da protagonista e formar com ela e Alex (Miles Heizer) um trio inseparável que passava tardes tomando café e zerando o cardápio da Monet's, Jess caiu na armadilha da competição feminina que é tão comum e tão arraigada na nossa cultura.

Quantas histórias a gente já viu de homens que tratam mal de diversas formas possíveis a mulher, mas a culpa é sempre de outra mulher e nunca dele? "A vadia que sempre deu em cima do meu namorado", "a mãe controladora que não dá espaço pra ele", "a amiga sonsa que é louca por ele e ficou colocando ideia errada na cabeça", "a irmã que não gosta de mim e sabotou nosso relacionamento perfeito". Note como o homem raramente é responsabilizado por qualquer coisa que tenha dado errado. A culpa sempre é da mulher, e foi esse pensamento que custou a amizade de Hannah e Jessica.

O afastamento já começa no momento em que Jessica e Alex iniciam o namoro, e embora seja compreensível que Hannah não caiba mais em todas as situações com eles, a forma que o casal escolhe pra lidar com a situação já é terrível. Em segredo, nos cantos, com idas ao cinema em dias que achavam que Hannah não estaria trabalhando. Isolamento com I maiúsculo, sem tentativas de manter a amizade dela ou oportunidades para que ela se relacione de forma saudável com os dois depois que eles ficaram juntos.

Mas o baque vem mesmo quando Alex termina com Jess e ela imediatamente assume que é porque ele tem algo com Hannah. Motivada por uma lista que a magoou e por comentários maldosos de estudantes que muito provavelmente dizem o mesmo dela. O tapa na cara foi doloroso, mas a perda de uma pessoa tão próxima por um motivos tão estúpido certamente foi pior pra Hannah. E o que ela diz pra Jess sobre culpa novamente ecoa forte pra todo mundo assistindo.

Assim como Hannah e Jess, que tinham tanto em comum, que poderiam ser aliadas e enfrentar juntas tudo o que passaram, tenho certeza de que você já se afastou de alguém porque precisava que a culpa de alguma coisa fosse dessa pessoa – ou essa pessoa se afastou de você porque precisava que a culpa fosse sua. Então, vamos nos preocupar menos em apontar culpados e mais nas coisas que nos unem? É difícil, mas precisa ser tentado. E de novo, precisa ser dito.

3. "Você já ouviu falar em efeito borboleta, certo? Que se uma borboleta bate as asas no momento certo, no lugar certo, pode causar um furacão a milhões de quilômetros. Talvez essas fitas comecem outro efeito borboleta. Quem sabe? Qualquer coisa afeta o todo".

Alex fez uma lista. Ele não foi o único, quase todo mundo já escreveu os nomes dos colegas, colocou em caixinhas e passou adiante. Ele fez pra ser aceito num grupo do qual nunca precisou ser parte e para machucar Jess, que não queria transar com ele, apontando como "melhor bunda" o nome de Hannah. Bobagem, certo?

Não se você pensar que a lista perpetuou o estigma que a foto tirada por Justin já tinha causado. Que fez Bryce (Justin Prentice) se sentir no direito de apertar a bunda de Hannah na loja de conveniências, começou rumores na escola de que Alex teria ficado com a garota e causou o fim da amizade dela com Jess. Uma bobagem que, afinal, fez Alex se sentir tão culpado a ponto de dar um tiro na cabeça ao fim da série.

De muitas formas, é fácil acusar a série de exagero e o exemplo de Alex é bem emblemático. Ele foi um dos que menos errou, um dos que não tinha intenção de fazer mal pra ninguém, um dos bons, e por isso mesmo o mais afetado por tudo o que aconteceu. Destruído por uma bobagem. Sinal de que todos precisamos prestar mais atenção nas bobagens que fazemos, porque qualquer coisa afeta o todo.

4. "Para a próxima fita, tome muito cudado, porque você está prestes a fazer uma coisa muito errada. Você já se perguntou como seria vigiar uma pessoa? Invadir a privacidade dela? Você imagina quais segredos descobriria?"

Ninguém questiona a presença de Tyler (Devin Druid) na lista, certo? Fotógrafo e stalker oficial da escola, ele tirou qualquer senso de segurança de Hannah perseguindo-a com os cliques da câmera, expondo sua privacidade com Courtney (Michele Selene Ang) e merecendo cada pedrinha naquela janela. Não há justificativa para o personagem, que pega carona no fim de tudo falando sobre todo o bullying que sofreu o tempo todo na escola, mesmo antes da morte de Hannah e início do ciclo das fitas, porque nada justifica espionar as pessoas desse jeito.

Mas tirando todo o exagero, esquecendo que Tyler é um sociopata com uma coleção de armas no quarto e um varal de fotos de pessoas que pretende exterminar, já não fizemos, em menor proporção, o mesmo que ele? Há quem leia um diário sem permissão, fuce o celular da/o namorada/o, dê aquela olhadinha no e-mail ou perfil que esqueceram de dar o logoff, e simplesmente não veja problema nisso. Num exemplo mais grave e rotineiro, são frequentes as fotos íntimas e sextapes vazadas o tempo inteiro, seja pelos envolvidos (na maioria das vezes, os homens) ou por quem rouba e hackeia o celular alheio. O que nos dá o direito de invadir a privacidade alheia assim e a que distância estamos de Tyler?

Só entende a gravidade quem já sentiu na pele, e isso a série diz no momento em que Clay (Dylan Minnette) espalha a foto de Tyler trocando de roupa pra toda a escola. Não era nada demais, nada que ele já não tivesse feito pior e, ainda assim, expôs e machucou o garoto num nível impensado. E mais uma vez, as palavras de Hannah são perfeitas: "talvez eu nunca saiba porque você fez o que fez, mas posso fazer você entender como eu me senti. É por isso que estou do lado de fora da sua janela, Tyler, e depois que as pessoas ouvirem isso, aposto que não serei a única".

5. "Que nome lindo, e que menina linda, com sua família perfeita, todos tomando café juntos toda manhã. Eu precisava de uma amiga e acho que você também precisava. Mas tinha alguns segredos que você queria manter, até mesmo de si própria."

Quando Courtney fez um escarcéu porque ninguém podia saber que ela é lésbica, minha reação inicial foi a mesma de Clay ao confrontá-la no fim do episódio: "mas você tem dois pais gays, que drama é esse?". E então, ela explica justamente a dificuldade que é ser filha de pais gays quando ninguém mais é; o senso de proteção que tem com eles, a vontade de evitar que digam que ela foi influenciada de alguma forma, a obrigação de continuar sendo perfeita aos olhos de todo mundo e preservar a suposta integridade de uma família que tem mais obrigações que as outras, justamente por não ter começado de um jeito tradicional.

Faz sentido, é genuíno, e foi bacana ver meus pensamentos de novo na boca de um personagem, assim como foi diferente e interessante a abordagem de homossexualidade na série. Mas, no fundo, é desculpa e todo mundo sabe disso. Courtney passa a série defendendo valores tão ultrapassados e age de uma forma tão caricata que não dá pra se comover de verdade com a questão, embora a reflexão que uma personagem assim causa seja válida. Ela se une aos valentões da escola, dedica seu tempo a "calar" Clay, protege com unhas e dentes os que mais erraram e, quando vem à tona a questão principal de Jess, é a única mulher num grupo de vários homens a não se solidarizar, como Ryan (Tommy Dorfman) bem aponta.

O que move Courtney é a mais profunda covardia, e esse seria o caso mesmo que ela não tivesse pais gays ou medo de ser reconhecida na foto com Hannah. Está no caráter (ou falta) de Courtney oprimir as pessoas e sabotá-las para continuar se sobressaindo como a princesinha perfeita que não desaponta ninguém. Então fala, Hannah: "eu tenho sido uma amiga pra você, e isso que você tem tanto medo que as pessoas saibam sobre você não importa pra mim, ok? Essa merda não importa. E sinto muito se você tem medo,  mas eu não sou seu escudo, ok? Você não pode se esconder atrás de mim. E você não pode foder com a minha vida porque não gosta de quem você é".

6. "Você queria ver se os rumores eram verdadeiros? Ou só queria começar alguns novos?"

O episódio de Marcus (Steven Silver) é provavelmente o que eu menos gostei na série, talvez por já ter entendido a mensagem que, como disse no início, tem mesmo que ser repetida. A gente precisava ver Hannah sofrendo abusos parecidos porque é o ciclo que acontece com muita gente: sucessivos maus-tratos que fazem a vítima acreditar que atrai aquilo, "só gosta de cafajeste", "tem dedinho podre", "faz por onde", essas coisas que a gente não cansa de falar e ouvir.

O princípio da história de Marcus é o mesmo de Justin: ele se aproximou de Hannah fingindo ser um fofo e, quando viu que ela não era fácil como imaginava, revelou o babaca que era. Talvez o que tenha me irritado mais é que conheço um monte de gente que age como Marcus, com suas teorias de que devem deixar o outro esperando o tempo que for e se a pessoa continuar interessada é porque o negócio está garantido, que fazem joguinhos e acreditam piamente no método "morde e assopra" como fórmula de conquista e, o pior, conheço gente que acha isso charmoso e se prende com tudo a esse tipo de relação.

Felizmente, Hannah não foi enganada muito tempo, mas o suficiente pra que se sentisse mais desvalorizada do que nunca: "qualquer coisa teria sido melhor do que ficar sentada ali, pensando que de alguma forma aquilo foi minha culpa. Pensando que eu ficaria sozinha pelo resto da minha vida". Mais marcante do que a babaquice de Marcus, e ainda nessa temática, foi o fato de que Clay não foi uma combinação perfeita pra Hannah no sistema de dia dos namorados arranjado justamente porque Jeff (Brandon Larracuente) o convenceu a mudar as respostas no questionário. Wingman oficial de Clay, ele estava bem-intencionado, mas se não tivesse se metido, as coisas podiam ser muito diferentes a partir dali. Agora imaginem o quanto de coisas poderiam ser diferentes se não cedêssemos à pressão dos joguinhos e fôssemos nós mesmos? Lição que tanto Clay, quanto Marcus poderiam ter aprendido antes.


7. "Você vai me dizer que isso não é nada demais, mas deixe-me falar sobre solidão. Humanos são uma espécie social. Nós dependemos de ligações pra sobreviver. Mesmo as interações sociais mais básicas ajudam. Se parece que estou tirando isso de um livro escolar, é porque estou. Uma pena que ninguém se deu ao trabalho de ler".

Mais uma suposta bobagem para a lista: Zach (Ross Butler) foi um dos porquês para Hannah porque roubava bilhetinhos com elogios de um saco de pão. Não vou negar que até agora acho um pouco exagerado que ele estivesse lá, mas está aí um exercício de empatia interessante: Hannah reforça o tempo todo o quanto aqueles recadinhos eram importantes pra ela, talvez a única coisa que a segurava naquele período sem a menor autoestima e isolada de todo mundo. Zach não foi agressivo como Marcus, mas traduziu sua dificuldade em lidar com a rejeição de Hannah perseguindo a garota de uma maneira infantil e quase obsessiva.

Zach é um cara essencialmente bom, influenciado pela crueldade do grupo e que não teve maturidade pra lidar com uma negativa. Ele peca por não ter percebido o mal que estava fazendo ao insistir numa picuinha. Foi uma questão de se colocar no lugar do outro, entender outros pontos de vista, ter empatia – termo que a gente reforça muito, mas só aplica quando convém.

Aliás, a representação dessa fita deixou bem claro que estávamos vendo estritamente a leitura de Hannah o tempo todo – a história que ela viu, sentiu, experimentou, e não necessariamente a realidade nos mínimos detalhes. Zach guardou a carta, Hannah conta que ele amassou, jogou fora e foi embora. Me pergunto o que mais ela distorceu, enxergou de outra forma ou escolheu acreditar para as coisas chegarem no ponto em que chegaram.

8. "Eu percebo agora que estava desesperada pra alguém me ouvir e você ouviu. E daí você transformou meus pensamentos mais íntimos em um espetáculo".

Já falamos sobre invasão de privacidade com Tyler e, embora não tenha perseguido, fotografado e apavorado Hannah em busca de sua intimidade, Ryan fez algo parecido de uma forma mais psicológica: se aproximou, compartilhou dicas de escrita e, quando ela menos esperava, divulgou seu poema sem autorização. Mais material de chacota para a escola, mais audiência para a publicação de Ryan, mais dor para Hannah.

Quem escreve ou tem pretensões de escrever sabe o quanto é difícil ser lido. O quanto nada nunca está bom o suficiente, o quanto o escritor coloca de si mesmo na página e morre de medo de ser julgado pelo leitor. No caso de Hannah, que já estava completamente fragilizada e tinha naquela relação de pseudo-amizade com trocas literárias seu último refúgio, o deboche em cima de seu poema tão íntimo foi um golpe ainda mais forte. E a partir daqui, as coisas só podiam (e iriam) piorar.



9. "Eu tinha que fazer alguma coisa. Eu tinha que impedi-lo, mas não conseguia fazer meus pés se mexerem. Estava escuro e a música alta, mas eu vi o rosto dele. Reconheci a voz dele com clareza, como todos vocês reconheceriam"

Bryce não é o foco direto da nona fita, mas não dá pra fugir das monstruosidades cometida por ele ao tratar dessa reta final da série, e o motivo é muito assustador: está cheio de Bryces por aí. Homens que não acreditam ter feito nada de errado ao violentar uma mulher, que usam e abusam de argumentos como os dele – "o que é do meu amigo, é meu", "ela estava pedindo", "se ela não quisesse, não cairia bêbada pelos cantos" ou "se ela não quisesse, não ficaria de calcinha e sutiã na minha frente". E o pior dos piores, "é um privilégio pra ela que eu tenha feito isso".

O que tem que ficar claro no caso do primeiro estupro mostrado na série, e nesse momento eu sinto que entramos em terreno realmente perigoso, é que a ÚNICA vítima dele é Jess. Todos os outros, envolvidos direta ou indiretamente são cúmplices, coniventes, culpados por omissão em algum nível. Óbvio que Bryce é o predador, o merecedor de todas as punições que, infelizmente, não vêm, pelo menos nessa primeira temporada – e o mais triste é que na maioria das vezes na vida, acontece o mesmo. Mas não dá pra isentar ninguém da culpa.

Justin é claramente o segundo mais fácil de execrar: namorado da garota, ele não só a deixou embriagada e desacordada sem proteção num quarto, como deixou Bryce fazer o que fez por uma espécie de "dívida de gratidão" que tinha com ele. A série faz um trabalho decente em mostrar a codependência na relação dos dois, o quanto Bryce era o refúgio de Justin quando a situação familiar apertava, e isso a gente entende até certo ponto, mas não justifica estragar a vida de outra pessoa como ele estragou a de Jess.

Em um nível menor, Hannah compartilha da mesma culpa e ela sabe disso. "Como é que eu vivo com isso? Como é que você vive, Justin? Como ela vive com o que aconteceu?", é questionado na fita. E aí cabe a nós nos colocar na situação em que Hannah estava naquele quarto e pensar se as coisas são tão simples: ela estava num local em que não deveria, bêbada, escondida, assustada e numa situação em que as coisas podiam piorar muito caso tentasse impedir Bryce, mas e quanto ao que ela poderia ter feito depois? Contar para Jess, para a polícia, pressionar Justin ainda em vida... Muitas possibilidades desconsideradas que ela provavelmente nem teve cabeça pra pensar, em meio ao turbilhão de coisas ruins que estavam acontecendo, mas ainda assim, possibilidades.

E a partir do momento em que é tudo jogado no ventilador, os ouvintes das fitas se tornam coniventes também. É claro que não dá pra saber a reação exata de cada um ao ouvir, mas o que a série mostra a princípio é um grupo de gente dedicada a desacreditar, minimizar, esconder ao máximo a situação, chegando até a proteger Bryce de saber o que foi dito nas fitas, só pelo fato de que ninguém quer lidar com isso se for verdade.

Clay chega a perguntar a Tony como é possível que todo mundo tenha ouvido aquilo e ignorado e a resposta dele é simplesmente "eu não acho que alguém ignorou", seguido de um "estou fazendo isso pela Hannah" pra justificar porque estão todos protegendo Bryce.  A reação de Clay, a despeito de não ter concluído as fitas, de não saber que Hannah passou pela mesma coisa de forma ainda mais cruel, é a mais humana e talvez a única aceitável dentre todos os estudantes. Com Jess em dúvida sobre o que aconteceu e Hannah morta, sinceramente, é difícil de acreditar que alguém estivesse protegendo Bryce por conta de uma delas.

10. "Às vezes, as coisas simplesmente acontecem com você. Apenas acontecem. Você não pode evitar, mas é o que você faz a seguir é que faz a diferença. Não o que acontece, mas o que você decide fazer sobre"

Sheri (Ajiona Alexis) é, facilmente, o argumento que qualquer pessoa vai usar pra desmerecer todo o arco das fitas e eu já li algumas críticas que se prendem justamente a esse ponto. Como é possível que uma pessoa que derrubou uma placa de "pare" seja colocada no mesmo bolo de um monte de adolescentes maldosos – ou que algum dia, sob a ótica de Hannah, agiram de forma maldosa – como motivo para o suicídio? Nem sei se discordo totalmente, a situação toda também me pareceu forçada em diversos momentos. Primeiro porque nunca teremos certeza de que o acidente foi realmente causado pela ausência da placa, ou de que teria feito diferença Hannah ou a própria Sheri avisarem a polícia minutos antes, já que tudo aconteceu tão rápido. Mas, mais uma vez, a mensagem é sobre responsabilidade.

É claro que Sheri tinha a obrigação de reportar o acidente, mesmo que não imaginasse consequências desastrosas imediatas. Talvez a batida seguinte tivesse acontecido de qualquer jeito, a única diferença seria na consciência dela – e de Hannah, que até tinha desde o início a intenção de avisar, mas sente que chegou tarde demais. E pelo que a gente vê de Sheri nos dias atuais, ajudando o casal que teve uma das partes envolvidas no acidente, é um grande peso na consciência e o alívio na consciência dela teria feito uma diferença considerável. Talvez tivesse feito diferença no suicídio de Hannah também.

A questão do álcool também é tratada, talvez mais superficialmente do que esperaríamos pela série, mas incisiva na fala "Infelizmente, precisamos de uma tragédia como essa para nos lembrar do quão importante é ficarmos seguros, ficarmos sóbrios, e nunca beber e dirigir". Diferente de Clay, não me convenci de que Jeff não bebeu nada e foi responsabilizado só por comprar as garrafas de bebida para os outros, mas aplaudo a discussão e, principalmente, a forma como a revelação foi conduzida. A estrutura do antes e depois do suicídio de Hannah foi sempre tão fluida que jamais me dei conta que Jeff não aparecia nas cenas do presente e demorei bastante pra entender que ele tinha morrido, mesmo quando a série jogou na minha cara ao mostrar Clay conversando com os pais do garoto. Mérito narrativo máximo que compensou a forçada de barra do início do episódio.


11. "Naquele momento, tudo estava perfeito. Pela primeira vez em muito tempo, eu imaginava um futuro feliz. Quão boa a vida poderia ser. Eu queria que você fizesse tudo o que estava fazendo, então não sei porque minha mente me levou pra outros lugares. E eu pensei em cada um dos outros caras, e eles todos se tornaram você"

Desde o princípio, imagina-se que o tema da fita de Clay é omissão. Hannah até pega bem leve com ele, porque são várias as situações em que ele presencia a humilhação dela pelos outros e fica calado. Em outras, ele minimiza os problemas dela e diz "ué, mas você tá chateada porque foi elogiada numa lista?" como se fosse elogio. É aí que está a maior culpa dele, e não em ter saído do quarto quando Hannah o expulsou aos gritos ou em ter deixado de falar que a amava.

De qualquer forma, o instinto do ser humano de se culpar e apontar culpados supera a amenizada que ela deu nesse porquê e o próprio Clay é levado a acreditar que "matou Hannah Baker" mesmo que ela própria tenha dito que o nome dele não pertencia à lista, mas precisava estar lá pra que ela contasse sua história. "Se eu vou explicar porque fiz o que fiz, é porque você não é como os outros caras. Você é diferente. É bom, gentil, decente. E eu não merecia ficar com alguém como você". Um pensamento equivocado dela, mas muito comum entre as pessoas, que no dia a dia acabam rejeitando os Clays e se contentando com os outros tipos representados na série. Roubando outra obra que também trata muito bem alguns desses assuntos, As Vantagens de Ser Invisível, a gente aceita o amor que acha que merece.

12. "Eu decidi dar mais uma chance à vida, mas dessa vez, pediria ajuda, porque sei que não consigo sozinha. Claro, se você está escutando isso, eu falhei. Ou ele falhou, e meu destino está traçado"

Despreparo é o que define o arco do sr. Porter e de todos no colégio. Ele tinha boas intenções e parecia genuinamente preocupado com os alunos, mas a falta de tato e de ferramentas pra fazer com que Hannah se sentisse segura o suficiente para se beneficiar de uma conversa com ele foi gritante. Primeiro reagindo ao desabafo dela da pior maneira possível, com acusação ("talvez você tenha tomado uma decisão de fazer algo com um garoto que agora você se arrepende, talvez você tenha consentido e depois mudou de ideia").

A cabeça dele funciona como a de muitas pessoas que lidam com relatos de estupro: se a vítima não mandou parar, não esperneou, não se debateu e lutou até o último minuto, é porque consentiu e isso está muito longe de ser verdade. Eu mesmo admito, enquanto assistia a cena em que Bryce ataca Hannah na banheira, fiquei me perguntando "mas por que essa menina não gritou? Os outros estudantes estavam por perto, alguém ia ouvir" e pensando que ela podia ter feito mais pra sair daquela situação. Em nenhum momento pensei que a culpa fosse de outra pessoa que não Bryce, mas é o tipo de pensamento que só passa pela cabeça porque a gente se acostuma a questionar a vítima antes de se colocar no lugar dela e oferecer algum conforto.

Também não acho que seja justo jogar o peso da decisão nas costas do sr. Porter, Hannah foi até bem cruel em colocar as coisas nesses termos. Mas quantos sinais aquela escola teve de que as coisas estavam muito erradas e ninguém fez nada? As ofensas pichadas nas paredes do banheiro, o poema de Hannah que sugeria suicídio e foi discutido pela senhorita Bradley (Keiko Agena, a Lane de "Gilmore Girls" finalmente representando a idade que tem) como se nada fosse... No ambiente escolar padrão, a máxima é sempre ignorar a opressão que jovens sofrem e operam, justamente porque os profissionais não estão preparados para lidar com isso e ignoram a necessidade de buscar mais essa qualificação pra fazer seu trabalho.

Uma fala do diretor para Porter ficou marcada na minha cabeça: "Veja o tempo e os recursos que dedicamos a essa garota". Lógica imbecil que faz com que muitas escolas sejam exatamente como Liberty High, e a solução encontrada seja colar pôsteres nas paredes depois que o pior acontece. Vamos gastar um pouquinho de tempo e recursos antes e melhorar as coisas tanto do ponto de vista humano quanto do operacional? A educação pede, grita por isso.


13. "Talvez você nem tenha percebido que estava sendo cruel. Talvez você não tenha feito absolutamente nada e talvez você devesse. Tarde demais. Acho que você sabe exatamente o que fez, e depois dessas fitas, você nunca vai esquecer".

Então chegamos ao fim (pelo menos por ora) de uma história sobre pessoas que em algum ponto da vida foram horríveis. Elas receberam áudios detalhados explicando onde erraram e o que desencadearam. O que isso diz de Hannah? É uma das coisas que mais precisam ser ditas sobre a série, um dos maiores méritos do roteiro e algo que muita gente ignorou completamente: ela foi uma pessoa horrível também.

Ela não foi horrível quando toda a escola lhe colocou rótulos pelo simples prazer de rotular alguém, quando perdeu o dinheiro dos pais ou quando se viu sem diferenciais acadêmicos pra fazer a faculdade dos sonhos. Ela não foi horrível quando, em sua mente, chegou tarde demais pra impedir um acidente ou quando foi violentada. Mas ela foi horrível por gravar as fitas, por mais que essa seja a razão pela qual a série existe, o estopim de todas as mensagens super necessárias que cada um tirou da trama.

Hannah foi vítima, mas também foi opressora das grandes. Calculou meticulosamente como afetaria cada um, fez diagramas, deixou Tony responsável (baseado simplesmente em culpa) por vigiar os outros e garantir que o ciclo de repasse das fitas acontecesse como planejado. Deixou claro que não queria que fosse fácil pra ninguém, que esperava um novo efeito borboleta, que tinha noção do que poderia desencadear. E embora não possamos culpá-la ou garantir que não faríamos o mesmo numa situação limite, também não podemos absolvê-la.

Portanto, quando alguém que assiste a série e se identifica muito (aliás, é quase impossível não se identificar) com os personagens disser "eu sou muito Hannah", pondere que ser muito Hannah não é só se sentir excluído, hostilizado e atacado. Ser Hannah é ser capaz de causar às outras pessoas, mesmo que algumas tenham feito coisas pequenas e sem intenção, o mesmo pesar que você sentiu ou pior, simplesmente pela satisfação de dar o troco. Ser Hannah é submeter os pais (Kate Walsh, você está perdoada por muitas escolhas ruins na carreira depois dessa atuação fenomenal!) à dor de encontrá-la ensanguentada num banheira, numa cena dolorosamente perfeita que me deixa atônito sempre que alguém acusa a série de glamurizar (?) o suicídio. Ser Hannah é estar no fundo do poço de todas as maneiras e não deve ser o objetivo de ninguém, mesmo que a identificação seja forte.

Por isso, procuremos compreender todos. Vamos nos colocar no lugar de Jess, consumida pela incerteza dos fatos a ponto de se tornar alcoólatra; ou de Justin, que era absolutamente medíocre em vários aspectos da vida e apoiava sua ilusão de grandeza na amizade de alguém terrível; talvez de Tyler, com sua psicopatia visível e o perigo que representa guardando armas em casa, seja pelos motivos óbvios ou pelos que nunca enxergamos; no lugar de Alex, que por ser filho do xerife estava em teoria "liberto" da maioria das consequências, mas foi levado pelos eventos pós-fitas a colocar uma bala na cabeça. Somos muito Hannah, sim, mas somos também Courtney, Marcus, Zach, Sheri, Sr. Porter, Ryan, Clay e até Bryce.

Enxergamos Hannah por completo? Entendemos que tudo o que ela sofreu importa, que o desespero é real, mas que não valida as decisões tomadas, tanto da vingança contra os outros, quanto de tirar a própria vida? Se sim, já é meio caminho andado. É parte do que precisava ser dito, pelo menos pra mim – falei lá em cima que era pessoal, certo? – e a série disse muito bem.

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14 comentários

  1. Achei que era podcast to doida

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  2. Amei, textão de qualidade e conteudo. :)

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  3. Não vi a série e nem verei (pelo menos por enquanto). Mas li e adorei!! Matando saudades de textos do SA ;)

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  4. Texto maravilhoso!!! Vendo a serie me lembrei q na época do colégio criaram um orkut anônimo que falava os podres do povo, todo o colégio comentava e ria das pessoas. Adolescente é um bicho muito idiota,ainda bem q as pessoas evoluem.

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  5. Adorei!! É possível entender porque a Hannah se suicidou. Ela passou por coisas horríveis e outras nem tanto (sempre vou achar forçada a fita da Sheri), mas a forma como ela arquitetou o suicídio mostrou uma faceta vingativa e não somente uma falta de vontade de viver.
    Acho importante ressaltar também que por mais que seja possível entender os motivos, a escolha foi dela. Deve ser mostrado que existem alternativas. Acho que algumas pessoas mais sensíveis podem ver e achar que realmente não existe outro jeito.

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    1. Exato, a própria atriz que interpreta a Hannah diz isso no documentário que está na Netflix falando sobre a série: o fato de ter terminado a vida ali impediu a menina de enxergar as diversas possibilidades, o tanto a mais que o mundo tinha a oferecer além daquela bolha em que ela estava.

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  6. puta textão foda bixo. Maravilhoso mesmo

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  7. Leo! Já disse várias vezes, mas vou repetir: Você escreve muito bem!!! Conseguiu traduzir e absorver significados que eu não tinha percebido, mesmo lendo e assistindo essa história. Então, muito obrigado por compartilhar sua experiência e seu texto!

    Por mais forte e necessária que a série seja, ela provocou um efeito positivo, pelo menos em mim. É vital que a gente viva essa empatia que é tão falada por todos. É necessário se importar. E se importar de verdade, não perguntar só para ficar por dentro de alguma fofoca. Se importar a fundo.

    Enfim, obrigado novamente pelo texto! Continue escrevendo, você nasceu para isso!

    PS: Entendi que o Tyler deu o tiro na cabeça do Alex. A montagem das cenas deixou isso bem claro... Aparece ele mexendo nas armas, ele com as fotos no varal, ele pegando a foto do Alex e em seguida o Sr. Porter fica sabendo que o Alex "deu" um tiro na cabeça. Posso estar errado, mas acho que estão tentando encaixar esse gancho serial killer na série, e acho totalmente desnecessário... Mas, né? Hollywood tem dessas...

    PS2: Kate Walsh é a dona do mundo inteiro. Puta atriz foda.

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    1. Aaaah, muito obrigado pelo comentário, Guilherme, fez meu dia!
      Quanto à cena do Tyler, eu até acho que quiseram deixar dúbia se não teria sido ele que atirou no Alex, mas duvido bastante. Pelo flashback que mostra o Alex defendendo o Tyler no corredor do colégio, e logo em seguida ele tira a foto do varal, entendi que ele estava justamente poupando o Alex e concentrado a vingança nos outros. Se não for isso o flashback fica sem sentido, e eu também acharia muito forçado da série implicar que uma pessoa atirou na outra, deixou a arma numa posição que desse a entender que foi o próprio Alex e perícia nenhuma detectou algo errado.

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  8. Super amei. Aliás comecei assistir a serie por conta da Jessica. Quando soube da violência, eu tive que assistir tudo pra entender tudo. E Jessica pra mim foi vítima das circunstâncias. Acreditou nos boatos e brigou com amiga. E pior de tudo sofreu abuso e o namorado desatinado meio que consentiu o crime. Então conseguimos ver uma Jessica que preferia acreditar na mentira contada pelo namorado. Do que na Ex-amiga. Então se tornou alcoólatra e drogada. Conseguimos ver ela nos flashbacks de um jeito. E nos tempos atuais totalmente desorientada.

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