Protogênese: The Killing, Mad Men, The Walking Dead, Breaking Bad – a AMC e a subversão da lógica televisiva
26.6.12
“Mais vale um homem lento à cólera do que um herói, e um homem senhor de si do que o conquistador de uma cidade.”
Provérbios 16,32
Semana
passada comentei sobre a HBO, a emissora que exibe os melhores shows na
tevê. No entanto, isso não quer dizer que a vida inteligente no
entretenimento está restrita a ela. Pelo contrário, outros canais pagos
estão lentamente – e esta é a palavra chave aqui – galgando seu caminho
para alcançar o esplêndido nível de produção do meu canal favorito. A
AMC é uma das que chega mais perto, mesmo que caminhe devagar e sempre.
Já
li verdadeiros impropérios sobre as tramas desenvolvidas para a AMC. As
reclamações são sempre as mesmas: ritmo lento, falta de acontecimentos
bombásticos, cenas silenciosas e intimistas. Oras, desde quando o
silêncio é prejudicial? Já diria o velho provérbio chinês que “a palavra
é prata, o silêncio é ouro” e quanto mais cedo as pessoas enxergarem
isso, melhor aproveitarão o que cada show do canal tem a oferecer.
Eventualmente, muitos se darão conta que as “longas caminhadas sem
sequer trilha sonora” não são preguiça da produção, mas sim
planejamentos estratégicos para nos colocar na pele dos personagens e da
situação claustrofóbica que estão inseridos. Cada alteração
respiratória, cada engolida em seco, cada piscar de pálpebras conta.
O ritmo lento, pasmem, também é proposital. Com o entretenimento cada vez mais pasteurizado, a cultura do “plot twist pelo plot twist”
ditando que um roteiro deve mudar bruscamente a cada ato narrativo, sem
qualquer coerência para as personagens, no intuito apenas de
surpreender espectador, é louvável que algumas produções ainda se
preocupem em levar a estória de forma orgânica. Se o show é bom,
absorvemos cada mensagem que ele nos passa e a partir daí criamos outras
mensagens --pois toda arte só pode ser considerada completa depois de
ser absorvida e regurgitada por quem a consumiu --, ao invés de esquecer
absolutamente tudo o que vimos 5 minutos depois como acontece em muitas
séries. A vida não tem acontecimentos bombásticos a todo momento e é
isso que o espectador médio, que não entende a proposta da AMC e por
isso critica, precisa entender. O sentimento propagado é de implosão,
não explosão.
Temos,
nesse contexto, o que chamo de subversão da lógica televisiva. Não
culpo os que pensam assim, pois a princípio a proposta realmente não faz
sentido. Desafia a fórmula, quebra paradigmas que nem todos estão
prontos para quebrar. Não é fácil encarar as coisas sob uma nova ótica
tão abruptamente, mas o esforço não só é necessário como muito
recompensador. Peguemos alguns exemplos práticos nos shows da emissora.
The Killing: Obra
prima do gênero investigativo, tanto a original dinamarquesa, Forbrydelsen, quanto a fantástica releitura da AMC. Tenho verdadeiras coceiras mentais ao
ler comparações do show com Twin Peaks, já que na obra de Veena Sud não
existem entidades demoníacas que se alimentam de medo e sim apenas um
crime envolto em uma atmosfera de muitas dúvidas -- como os crimes da
vida real são --, ao contrário do que as resoluções fáceis de CSIs e
seus genéricos nos fazem pensar.
Me dói ver que muitos acompanharam o
show apenas para saber “quem matou Rosie Larsen?”, quando o que
realmente importava era “o que a morte de Rosie Larsen causou?”. O show
conseguiu subverter a lógica das histórias de investigação e agora, para
mim, pouco importa a resolução do crime em si. Enquanto muitos ficaram
revoltados com a morte acidental da moça graças à estupidez impulsiva de
sua tia, eu aproveitei cada segundo da investigação e de seus
desdobramentos para as outras personagens, independente de como
terminasse.
Mad Men: Queridinha
das premiações e não à toa. Mad Men é um retrato fiel das agências de
publicidade nos anos 1960, em todas as suas nuances. A força do show
está na identificação causada por suas personagens, mesmo que elas
estejam inseridas em um contexto tão diferente do nosso. Todo mundo
conhece um Don Draper ou uma Peggy Olsen em seu dia a dia cotidiano. A
verdade é que, passando pelas três primeiras temporadas de Mad Men, não
tem como não devorar um episódio após o outro depois que a história
engrena e, se você der essa chance, concordará com os críticos mundo
afora que o show mereceu todos os prêmios que recebeu e muito mais.
E o que há de tão bom em Mad Men, afinal? Quem entendeu a proposta do show percebeu que há um jogo dicotômico entre o ambiente clean
-- eu diria até asséptico -- em que os executivos vivem e a sujeira
moral e ética em que eles estão inseridos. E é com esse jogo que a AMC
subverte as regras dramáticas de um programa televisivo e nos entrega
uma crítica ferrenha ao modo de vida estadunidense e ao capitalismo
exacerbado, onde o que importa é a imagem de um produto, para que assim
suas vendas sejam maximizadas, deixando a qualidade do mesmo em segundo
plano. Em tempo, não chega a ser irônico que uma propaganda de
refrigerante tenha utilizado um slogan como
"Imagem é tudo. Sede não é nada!"? Pois deixo vocês com essa pulga
atrás da orelha, refletindo acerca de sua ligação com o show da AMC.
The Walking Dead: Quem imaginaria um dia ver um produto de cultura popular envolvendo desmortos
em que estes não seriam o foco dramático da narrativa? Pois bem, a AMC
e o renomado diretor Frank Darabont uniram forças para adaptar o maior
fenômeno do mercado editorial de arte sequencial para a tevê, e nos
brindou com uma trama introspectiva e psicológica, que usa o apocalipse
zumbi como pano de fundo para contar a mais humana das histórias no ar
atualmente. Quem não se identificou com Rick quando este se viu várias
vezes diante de uma escolha de Sofia? Quem pode realmente vilanizar o
Shane conhecendo todas as motivações e tudo o que ele passou para salvar
a família do amigo que foi parar no hospital por sua culpa? E caso a
sua filha desaparecesse no meio de uma mata cheia de zumbis você
seguiria em frente ou se agarraria a qualquer fiapo de esperança de
reencontrar seu rebento?
Esses
são pequenos exemplos dos inúmeros que eu poderia dar de como a série é
ousada e vai fundo nessas questões de ordem ética, moral e até mesmo
cívica envolvendo um grupo de pessoas que se encontram no limite da
sanidade. Outro exemplo de ousadia dos produtores é o desenvolvimento
lento e que muitos consideram modorrento. Pois a decisão se mostra
acertadíssima com o marasmo e a lentidão em como a trama avança
contrastando com a urgência em que se encontram os personagens,
subvertendo o que é esperado de uma trama envolvendo desmortos.
Breaking Bad: Não por acaso deixei o que considero o crème de la crème do
canal para o final. Um dos shows de maior visibilidade do canal AMC é
“Breaking Bad”, que começou ignorada por crítica e público
estadunidense, mas terminou por vencer as barreiras impostas por
espectadores sem arcabouço cultural para acompanhá-la e paúra de lidar
com as verdades inexóraveis expostas a sangue frio na tela da tevê.
Esse
é o exemplo perfeito de um show que subverte as expectativas e
transforma o protagonista em vilão, numa construção orgânica e gradual,
assim como a transformação preconizada por Dr.Jekyll e Mr. Hyde. Walter
White inicia sua incrível jornada como o professor de química que quer
deixar a família confortável após ser vitimado pelo cruel câncer e acaba
(até agora) como um arauto da violência, sem deixar de ser a vítima em
momento algum, movido pelo medo e pelas circunstâncias do meio em que se
vê exposto.
Breaking Bad é a genialidade crua de Vince Gilligan transformada num produto para a massa televisiva. Uma peça cultural sine qua non,
que desnuda o funcionamento da cadeia intricada do tráfico, patrocinada
pela classe burguesa estadunidense -- muito embora a questão seja
aplicável em qualquer sociedade bruta da nossa atualidade --, que
insiste em apenas comer seus jantares congelados em frente à tevê
ignorando o que seus filhos devolvem ao mundo.
O
que impressiona no show é sua capacidade de construir cada personagem,
tijolo a tijolo, dando tempo para que o cimento entre eles seque e se
solidifique, ao longo da trama. Muitas vezes, entretanto, esse
amadurecimento natural é incompreendido pela massa inculta e confundida
com lentidão, algo compreensível nos dias de hoje, em que lidamos com
espectadores sem qualquer sagacidade em suas mentes tomadas pelas
engrenagens do capitalismo e do industrialismo, moldadas pela cultura do
videoclipe iniciada com a MTV e consolidada com o YouTube, e que agora
ecoa na forma de comunicação veloz, descartável e sem conteúdo com a
cultura do SMS e do Twitter.
Como
amostra, cito aqui a obra de arte realizada no episódio “Fly”, em que
Walter e Pinkman se vêem frente a frente com esse inimigo voador. A
feroz caçada à mosca causou furor entre os ignorantes que não sabem
apreciar a beleza e a construção da poesia dramática: uma grande
metáfora sobre relacionamentos, com cenas de alta periculosidade e
obsessão, que demonstraram as camadas e a profundidade gutural entre os
protagonistas. Cada diálogo entre as personagems imbuídos de força e
significado, mas sendo simples e arrojado ao mesmo tempo, assim como o
show, em sua totalidade.
Poderia perder horas aqui e citar muitos outros casos de como a emissora ousou em outros shows como Rubicon, Hell On Wheels e The Prisoner, mas vou deixar que você, leitor embasado, faça esse exercício criativo e diga o que mais tem de subversivo na tevê atualmente.
P.S. a postagem deveria ter saído no domingo, mas de acordo com o conceito de subversão da AMC, decidi que a lógica da coluna semanal também deve ser subvertida e agora, todo dia é dia.
P.S. a postagem deveria ter saído no domingo, mas de acordo com o conceito de subversão da AMC, decidi que a lógica da coluna semanal também deve ser subvertida e agora, todo dia é dia.
15 comentários
Quando começa citando a bíblia, é pq o negócio ficou sério!
ResponderExcluiresse canal tá muito foda! até The Killing que não era muito comentada teve um final de temporada maravilhoso! Resta saber qual será a nova aposta do canal para continuar no topo!
ResponderExcluireu só li o texto inicial. não assisto nenhuma série da AMC, mas já tenho no meu HD as 4 primeiras temporadas de breakind bad e esse parágrafo inicial falando do ritmo e até da falta de trilha sonora com certeza vai me ajudar a apreciar mais essa série. parabéns :)
ResponderExcluiraproveitei o li o texto de Mad Man e realmente me deu vontade de ver essa também.
ResponderExcluirAté então eu só chamava os zumbis de errantes, mas agora os chamarei de desmortos. Achei subversivo.
ResponderExcluirAguardando analise dos shows da ABC Family
ResponderExcluir''Me dói ver que muitos acompanharam o show apenas para saber “quem matou Rosie Larsen?”, quando o que realmente importava era “o que a morte de Rosie Larsen causou?”.''
ResponderExcluirProtógenes vc conseguiu espressar tudo o que eu sinto por essa série tão desvalorizada pelo público, virei tua fã, e agora vou ver todas as produções da AMC.
Esse texto é uma peça cultural sine qua non. Na coluna passada fui convencido a largar True Blood, agora me ensinou outra maneira de enxergar os desmortos!
ResponderExcluirDas séries comentadas não assisto apenas The Killing, e não vou assistir, não vi nem o pilot e nem pretendo ver, do mais as séries da AMC são as melhores, e bajulação à parte, Mad Men in my opinion é a melhor!
ResponderExcluirSe eu disser que eu concordei com TUDO em relação a The Killing, significa que eu tô precisando rever minha vida e meus conceitos, produção?
ResponderExcluirAcho que nunca vai existir uma protogênese mais PNC que essa!
ResponderExcluirRegozijei-me com a congruência de tal texto acima exposto. Protogênese é o autor que versará acerca de toda nossa geração.
ResponderExcluirAos néscios só me cabe orientar que procurem e levem em seus artelhos superiores quantidades pequenas de um fruto do coqueiro rico em valores nutritivos e que combate o colesterol.
Porque PNC pouco é bobagem!
Jesus, como você é chato! Não consegui passar do primeiro parágrafo e odeio todas essas séries pretensiosas pra caralho!
ResponderExcluirEntão vai assistir Gossip Girl e seja feliz em sua insignificância.
ResponderExcluirNão consegui ler inteiro, mas acho que a gente podia ir tomar um expresso no Starbucks e discutir SUSTENTABILIDADE com meus amigos designers.
ResponderExcluirComenta, gente, é nosso sarálio!